O valor da memória

“Não tenho pejo de confessar que sou um cidadão acomodado e omisso e, como tal, completamente destituído de espírito público. Isso não impede, entretanto, que seja de parecer que indivíduos deste jaez deveriam ser fuzilados, a começar por mim, naturalmente”. Este é o sessentão Carlos Reverbel falando de si mesmo, em 1978. Seu texto é excelente em forma e extraordinário em fundo, chegando ao requinte dessa auto-ironia, como hoje quase não se vê na crônica de jornal, salvante o caso de um Carlos Heitor Cony, com que tem laços óbvios de parentesco espiritual: jornalistas da antiga, ratos de jornal, cultos, francófilos, céticos, profundos amantes da memória.

Memória, começo necessário desta conversa sobre o relançamento de parte da obra de Carlos Reverbel, em projeto da Já Editores, sob organização de Cláudia Laitano e Elmar Bones, sob o título Carlos Reverbel — Textos escolhidos, livro que se encontra na Feira a preços camaradas. O volume compreende quatro livros inteiros: uma biografia de Simões Lopes Neto, Um capitão da Guarda Nacional; um livro de memórias, Arca de Blau; dois livros de crônicas, Barco de papel e Saudações aftosas; e ainda textos esparsos, desde reportagens para a antiga Revista de Globo e Província de São Pedro, até textos originalmente estampados no Correio do Povo, no tempo em que este jornal prezava a vida cultural a sério (e não era este mero arrolamento de notas sobre atividade cultural, porque não tinha medo de textos de mais de dez linhas), e na Zero Hora, onde Reverbel deu à luz uma série de suas crônicas, sempre encorpadas pela memória. (O livro é um refrigério para a vida mental da redondeza, porque dá a conhecer uma obra imperdível, e o faz em forma adequada: capa dura, imprescindível para o bom manejo das 795 páginas, a que falta apenas um índice onomástico.)

Reverbel nasceu em 1912, em Quaraí. Criou-se numa vida de fazendeiro, em família de largas posses e bastante ilustrada, coincidência que era relativamente comum até certo tempo atrás. Veio a Porto Alegre, para estudar, em 1927, e seguiu estudando no antigo Anchieta até 1933, quando abandonou os estudos formais sem formar-se e sem habilitar-se, portanto, para qualquer curso superior, para desgosto de sua família. Resolveu ingressar no jornalismo, vocação rara em sua geração e classe; para começo de carreira, preferiu trabalhar num jornal de cidade acanhada, a Florianópolis de 1934. Depois disso retornou ao Rio Grande do Sul, onde fez carreira de sucesso no Correio do Povo. Militou na Livraria do Globo, como secretário burocrata e como jornalista, nas duas revistas da época, a popular Revista do Globo e a super-intelectualizada Província de São Pedro.

Na altura de 45, intensificou a convivência (que jamais terminaria) com a obra de Simões Lopes Neto. Primeiro, numa extensa reportagem com a viúva, que ainda vivia; depois com a redescoberta dos textos que viriam a compor o livro Casos de Romualdo; tempos adiante, com a biografia que agora se reproduz. Em suas memórias, fez questão de apor título alusivo ao escritor pelotense: aquela “arca de Blau”, que é o tesouro das memórias de Reverbel, evocava o personagem-narrador dos Contos gauchescos. Em 47, vendeu quase tudo que tinha para viver por dois anos em Paris, já casado. Na volta, viria a ser um dos mais importantes, senão o mais importante, dos jornalistas culturais de século 20 no estado, ao protagonizar uma seção de literatura e cultura no Correio, a partir de 1954. Não apenas editou, escreveu, resenhou e fez reportagens ali; também inventou pautas, propôs textos para escritores daqui e de fora, promoveu enquetes, fez andar a fila da vida cultural letrada.

Viveu até 1997. Sua presença faz uma falta enorme: para além da figura gentil e acolhedora que era, tratava-se de um daqueles sujeitos que tinha, já de moço, a perspectiva da história e o gosto das reminiscências, motivo por que soube desde cedo aproveitar idéias que os jornalistas nem sempre percebem como importantes. Exemplo: em 1948, se lançou a Santana do Livramento entrevistar uma senhora de 93 anos que tinha conhecido, adolescente, naquela cidade, ninguém menos que José Hernández, o autor do Martin Fierro, clássico escrito em parte ali mesmo, na fronteira brasileiro-uruguaia.

Seu faro histórico o fazia igualmente detectar valores no presente. É o caso de uma extensa reportagem que faz, no calor da hora de 48, sobre os jovens gravuristas de Bagé, terra que, segundo o bem humorado mas nunca nihilista Reverbel (o nihilismo é uma das flores fáceis do jornalismo cultural, garantindo sucesso junto aos impressionáveis e aos tolos de todos os tempos mas improdutivo a longo prazo — o prazo mental com que Reverbel e os bons trabalham), seria uma das mais improváveis para a eclosão de movimento artístico de tipo moderno.

Na crônica propriamente dita, é um dos bambas da língua portuguesa, sem favor algum. Com estilo agradável na linha de Rubem Braga (ou, no campo da memória, de Pedro Nava), brincando com o tema e consigo mesmo, manejando a alta cultura letrada e com a vivência profunda da cidade — especialmente a cidade de Porto Alegre, que ele retratou em detalhes e minúcias a que os amantes do tema devemos agradecer penhorados —, ele soube comentar o miúdo recente, como a estranha mania do “chispa”, nos anos 70 do Parcão, tanto quanto o graúdo das questões profundas, em particular as mudanças na paisagem da cidade, tudo sempre tomado de um ângulo capaz de mostrar o ridículo que se esconde na solenidade.

Maragato de família, antigetulista nos anos 30, espantado com o sucesso do Tradicionalismo mas capaz de elogiar a importância das pesquisas de Paixão Cortes; apreciador de intelectuais lusófilos como Gilberto Freyre ou Moysés Vellinho, amigo de Erico Verissimo e admirador de Darcy Azambuja; incorformado com o barulho em Porto Alegre e envolvido sempre com a divulgação das leituras antigas da terra, que ele cultivava com requintes de colecionador de livros e o paladar refinado dos grandes leitores — Reverbel é daquelas figuras que engrandeciam o interlocutor, ao vivo, e fazem o bem do leitor, por escrito. Revê-lo agora, nas páginas da bela edição recente, é um presente sublime.


Luís Augusto Fischer